Para quem quer ir: "Além"
Renato Mendonça

É costume dizer que se conhece um homem pela sua casa. No caso de Vagner Cunha, o dito se confirma. Seu apartamento, em Porto Alegre, é uma construção antiga, de pé-direito alto, ampla, arejada, com as paredes tomadas quase que totalmente por janelas e por quadros. À opulência visual, se contrapõem os sons bucólicos de uma microrreserva natural, em pleno bairro Bom Fim. Os móveis optam pela madeira crua, mas Vagner está sempre com um laptop à mão, estendendo a conversa aos não-limites do espaço virtual. E tudo isso sintomaticamente a algumas dezenas de metros da Avenida Independência. A impressão é de convivência: o contemporâneo com o primitivo, o estímulo visual com o sonoro, o sofisticado com o intuitivo. A impressão é de independência de modelos. A impressão é de um modelo absolutamente pessoal.
O CD "Além" é tudo isso, e mais além.

A escolha pela multifacetada palavra "além" é perfeita. "Além" significa coisas que estão adiante, elementos que se somam, a indicação de que sempre há uma referência ou descoberta a ser percebida. O CD "Além" também é multifacetado. Pode-se ser encarado como a radicalização das propostas que Vagner registrou no multipremiado CD duplo "Mahavidyas" (2010). Além disso, pode ser entendido como a afirmação de Vagner como instrumentista, respondendo pelos sons de violino, viola, harmônio, glockenspiel e piano registrados no disco.
Mas, por que não ir além? O que mais impressiona é que "Além" é uma obra para ser ouvida... e vista. E não me refiro especificamente ao excelente encarte de Fabio Zimbres, mas à corporeidade sugerida pela audição das oito faixas. Fã compulsivo do cinema, Vagner sempre pautou suas composições por um forte elemento visual - não é por acaso sua expressiva produção para trilhas de filmes nem sua constante colaboração com o Terpsi Teatro de Dança. E "Além" provoca e incita por esta ambição de desfazer fronteiras entre os sentidos.

Romper fronteiras, entretanto, implica abrir mão de itinerários conhecidos. No caso de quem quer ir "Além", sugiro as seguintes instruções: "Ouça as melodias como se fossem palavras, ouça as palavras como se fossem melodia". E as descobertas serão naturais: "Metamorfoses" ergue e destrói paredes de som, estendendo a convicção de que nada está completo; a quase valsa "Canção" coloca as vozes de Gisele de Santi e de Dudu Sperb em registros extremos para enfatizar a delicadeza; "Sala de Espelhos" espelha as vozes da dupla, embaralhando seus timbres com os de outros instrumentos, nos fazendo pensar de que trilha de filme ela saiu. A faixa-título não se contenta em ser música - é convite a mover os sentidos mais além.
"Interior Holandês" tem um quê de paródia: como se aludindo ao território batavo conquistado ao mar por meio de diques, a faixa combina sons bucólicos de mato com uma melodia compassiva e confortante. Seria Vagner querendo sinalizar as tantas camadas que uma obra de arte concilia e esconde? "Vem" é uma parceria com Vitor Ramil, que a canta experimentando uma colocação de palavras que busca confundir-se com a linha melódica.
A mais que perfeita tradução de o CD "Além" nos chega justamente em suas faixas mais extensas. - em "Ondina" (quase 9 min de duração) e em "Saturno" (perto dos 20 min). É então que os prodígios de harmonizar palavra e melodia, sons da linguagem e linguagem do som se realizam em sua amplidão fascinante, quase em tom de mergulho. "Ondina" nos coloca de frente a uma praia em que se sucedem ondas de sons, que assomam e se quebram e assomam novamente, exigindo que descubramos pequenos tesouros como o som do acordeão tocado por Antônio Borges-Cunha.

"Saturno", e sua evidente alusão ao deus romano que comandava o tempo, coroa o disco. A partir de uma célula de melodia que pontua toda a faixa, Vagner manipula o tempo, a atenção, as importâncias, a relação entre vozes e instrumentos, compartilhando com o ouvinte a descoberta de que a música não é tão-somente um planeta, ou uma coleção destes, mas um sistema regido por relações mútuas, onde os pesos e as medidas da palavra e da racionalidade se igualam aos da intuição e da sensação. A história narrada em francês dá conta de que Saturno comia seus filhos na tentativa de evitar que se cumprisse a maldição de que ele seria assassinado por um deles. Mas Saturno (Cronos, para os gregos) também era o inspirador das festas romanas Saturnais, quando os escravos mudavam de papel com seus senhores, e a paz e a tolerância se impunham por alguns dias. Não há contradição: o deus "Saturno" corporifica o que o tempo tem de implacável, mas nos autoriza a subvertê-lo em nome do todo-poderoso prazer. Um convite à liberdade que o CD "Além" oferece a todos que o ouvem.
Assim se conta e canta e soa "Além". Uma viagem sem itinerário conhecido, sujeita a descobertas, atraente tanto no que mostra quanto no que esconde. Embarque sem medo, mas não esqueça das as instruções: "Ouça as melodias como se fossem palavras, ouça as palavras como se fossem melodia".







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A L É M

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Vagner Cunha
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1. ONDINA Vagner Cunha 8’56
2. VEM Vagner Cunha e Vitor Ramil 4’53
3. ALÉM Vagner Cunha 4’15
4. SALA DE ESPELHOS Vagner Cunha 6’47
5. METAMORFOSE I Vagner Cunha 8’02
6. INTERIOR HOLANDÊS Vagner Cunha 3’54
7. CANÇÃO Vagner Cunha sobre poema de Fernando Pessoa 3’07
8. SATURNO Vagner Cunha 17’47



Vagner Cunha violino, viola, harmônio, glockenspiel e piano
Gisele De Santi Voz
Julia da Rosa Simões flauta
Luciano Dalmolin contrabaixo

Participações especiais
Cuca Medina vozes em Saturno
Vitor Ramil voz em Vem
Dudu Sperb voz em Canção e Sala de Espelhos
Antonio Borges-Cunha acordeão em Ondina


Ficha técnica
Gravado, mixado e masterizado por Leo Bracht no Transcendental Audio
Gravações adicionais por Leandro Lefa
Produzido por Vagner Cunha e Leo Bracht
Produção executiva de Fabiano Bonella
Ilustrações e arte de Fabio Zimbres


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